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domingo, 22 de dezembro de 2013

A Fundadora e a Fundação (do Convento de Jesus)



A fundadora desta casa monástica foi Justa Rodrigues Pereira, uma personagem ímpar no seu tempo que conseguiu pela sua força de vontade construir um convento onde passasse o final da sua vida e aí constituir o seu panteão familiar. A escolha da Ordem religiosa recaiu sobre o ramo feminino dos franciscanos, as clarissas, mais concretamente a ordem terceira observante da reforma coletina8, que preconizava uma vida despojada de riqueza material, vocacionada para a oração e trabalho manual, com uma clausura muito rigorosa (GOMES, 2009: 55), voltando à pureza original da regra primitiva de Santa Clara. A maioria dos conventos femininos em Portugal pertencia à regra clarissa, tendo sido uma instituição muito acolhida pela realeza e nobreza, tendo recebido vários dos seus membros, mas conseguindo manter uma grande transversalidade de estatutos nas mulheres que ingressam nas suas clausuras. Na viragem do século XVI o clima religioso nacional privilegiava movimentos de clausura mendicante, em especial o movimento franciscano, pois este tinha o patrocínio régio (Ibidem).

A data de nascimento de Justa Rodrigues é desconhecida mas deverá situar-se, possivelmente, na década de 20 do século XV. Não sendo de linhagem nobre, os primeiros anos da sua vida e a sua ascendência são-nos desconhecidos, os poucos dados de que dispomos indicam-nos que seria egitaniense9 e que tinha três irmãos – Isabel, Beatriz e Nuno, embora se desconheça a sua filiação. Da sua relação com Bispo da Guarda D. João Manuel nascem os dois filhos, João Manuel e Nuno Manuel, tendo o primeiro nascido em 1640 e o segundo, provavelmente, pouco depois dessa data (SILVA, 1987: 13; GOMES,2009: 61).

O irmão Nuno era criado de D. Fernando, Duque de Viseu (1433-1470) e terá sido a sua influência junto deste que contribuiu para que Justa fosse escolhida para se tornar a ama-de-leite do seu filho mais novo D. Manuel, futuro rei de Portugal, quando este nasceu em 1469 (SILVA, 1987: 13; GOMES,2009:54). A escolha também teve em conta a sua formosura bem como a reputação de mulher piedosa, culta e virtuosa, qualidades procuradas para um emprego desta natureza pois acreditava-se que os traços de personalidade da ama passavam para a criança através do leite (BUESCU,2011: 24). Por não ter um título nobiliárquico, como já foi referido, será o de ama de D. Manuel aquele que usará até ao fim da vida, como forma de se aproximar da alta nobreza e se fazer valer da relação próxima que tinha ao futuro monarca. A ligação estreita entre a ama e a criança é compreensível à luz das práticas medievais e modernas de puericultura em que o bebé acaba por ter mais convivência com a ama e os seus filhos do que com os seus progenitores e irmãos (Idem: 16-26) o que explica o laço afectivo criado entre Justa Rodrigues e os seus filhos e D. Manuel, com efeito, depois de ascender ao trono, este legitima os seus irmãos de leite.

A empresa de erguer um convento está, normalmente, associada a patronos nobres ou de vastas posses pelo que, para uma mulher que não reunia essas duas condições, levar a cabo um projecto dessa natureza era muito ousado e só foi alcançado pela tenacidade e perseverança de Justa Rodrigues. Esta, não só levou a bom porto a construção do convento, como também conseguiu, por bula papal em 1505, autorização para instituir o seu panteão familiar no convento (SILVA; 1987: 14), para si, para os seus dois filhos – na igreja – e a sua mãe, que manda transladar do mosteiro de Abrantes e coloca-a numa campa rasa na sala do capítulo que mais tarde a recebe e onde se lê apenas AQI IAJ A F/VNDADORA/DESTA CAZA. Outro facto digno de nota é o de ter conseguido títulos para os seus descendentes (Ibidem). A ligação da família de Justa Rodrigues ao convento não se esgota na geração seguinte à sua, na verdade ingressaram nele várias mulheres da sua linhagem nos séculos posteriores como sobrinhas, bisnetas e outras (GOMES, 2009: 62).

As razões por trás da vontade da fundadora são, primeiramente, de índole pessoal: a salvação da sua alma, não podemos esquecer que Justa Rodrigues teve dois filhos de um prelado, o que constituía um grave pecado, também na linha dos motivos pessoais a construção de um panteão familiar para perpetuar o nome dos Manueis (SILVA; 1987: 13-14). Outras razões, cuja Oimportância poderá ser secundária mas sem dúvida que estiveram presentes na mente da fundadora, foram uma lógica linhagistica no seio das esferas cortesãs – o que beneficiaria as gerações futuras – e mesmo uma promoção social de Justa, o que acabaria por se reflectir no futuro da sua descendência (GOMES, 2009: 54).

O sítio escolhido para a implantação do convento, junto ao bairro do Troino, deve-se à doação de um terreno, feita em testamento pelo infante D. Fernando a Justa Rodrigues, terreno esse situado fora das muralhas mas próxima de uma porta de acesso ao interior do perímetro urbano (SILVA,1990: 55), numa zona chamada de Fonte Santa (BRAGA, 1998: 385). No entanto este pedaço de terra era insuficiente para a construção pelo que foi necessário comprar mais terreno anexo que era propriedade da Confraria da Anunciada10 e só foi possível adquiri-lo através da acção da rainha D. Leonor (Ibidem; SILVA,1987: 15). Outras doações foram feitas por particulares em terras e dinheiro que permitiram levar a bom porto a empresa mas, sem sombra de dúvida, que o grosso das despesas foi suportado pela coroa através das doações feitas por D. João II (r.1481-1495), e, depois dele, D. Manuel I. O mecenato deste último monarca foi significativo pois começou quando era ainda Duque de Beja e continuou depois da sua ascensão ao trono (SILVA, 1987: 16-18). Uma doação de peso foi a realizada pelo mestre da Ordem de Santiago D. Jorge, bastardo do rei D. João II doando o terreiro em frente ao convento e aí instalando um pelourinho em 1525 (SILVA,1990: 57; PEREIRA,1989: 24) de modo a que esse espaço ficasse vazio de habitações de modo a que nobilitasse o próprio convento, assim se encontrando até aos dias de hoje.

Quanto à alegada insalubridade do terreno, os problemas desta natureza só aparecem na documentação no século XVIII e XIX, sendo que em 1867 se dá ordem para que nenhuma religiosa ou outra qualquer pessoa não fosse enterrada no espaço monástico mas sim num cemitério comum (CARVALHO, 1969: 198). Nos meados do
século XV o terreno foi arroteado e enxuto, passando a ser cultivado. Aí foi instalado o Hospital da Misericórdia (Idem: 70), factores que não se coadunam com insalubridade. Para além disso diversos nobres que detinham terras perto do convento viram negados os seus pedidos para construir casas e quintas. (GOMES, 2009: 58). A própria Justa Rodrigues não iria construir um convento onde se iria recolher, se o terreno fosse insalubre (Idem, 71), tal como não conseguiria as doações necessárias para a sua construção. Tanto as crónicas como as listagens dos óbitos registados no convento dão-nos uma perspectiva de boas condições de saúde e de vida relativamente longa, e que, a título de exemplo, entre 1740 e 1878 apenas morreram 78 religiosas e que, da peste de 1833 apenas 2 freiras perderam a vida desse mal (CARVALHO, 1969. 120-123). O abastecimento de água ao convento era feito por meio de um ramal do aqueduto do Bonfim, pré-existente ao convento, que D. Manuel mandou construir para o abastecimento da casa monástica, saindo numa fonte do claustro (BRAGA, 1998: 415) e sabemos que existia um «cano real de águas grossas», um sistema de esgotos que partiam do convento para o mar e sofre reparações por volta da década de 30 do século XVII (CARVALHO, 1969: 111), pelo que por essa data as questões da salubridade não se deveriam pôr.

É impossível datar quando surgiu no espírito de Justa Rodrigues a ambição de construir um convento. Possivelmente seria uma aspiração pessoal que encontrou a primeira materialidade em 1470 com o terreno doado em testamento por D. Fernando. O facto é que a 15 de Junho de 1489 é emitida uma bula do papa Inocêncio VIII (r.1484-1492) permitindo a construção da casa monástica em Setúbal (SILVA, 1987: 57). A cerimónia do lançamento da primeira pedra deu-se em Agosto do ano seguinte (SILVA, 1987: 18) depois da compra do terreno à Confraria da Anunciada. Até ao ano seguinte apenas foi construído a portaria, adro e dormitórios. Oficialmente, Justa queria que o rei estivesse presente no início das obras da igreja (Ibidem) mas provavelmente a razão seria a falta de verbas para continuar a campanha de obras. Em 1491, aproveitando a presença do rei em Setúbal, Justa convida-o a assistir à liturgia no local onde se iria erguer a igreja do convento, e da qual já estavam abertos os alicerces (Ibidem). Terá sido neste enquadramento que o rei aceitou patrocinar o projecto, impondo o lançamento de novos alicerces para que a igreja e outros espaços fossem maiores e mais monumentais, de modo a poder acomodar trinta e três freiras em vez das treze inicialmente previstas. Neste seguimento dá-se uma nova cerimónia de lançamento da primeira pedra a 22 de Agosto, desta vez com a presença da família real e presidida pelo Bispo de Tânger, D. Diogo Hortiz de Calçadilha (Ibidem).

Aquando da morte de D. João II, o patrocínio régio manteve-se na pessoa de D. Manuel I que, como já foi referido, tinha uma forte relação pessoal com a fundadora.
Significativamente, doou os dois sinos da igreja que ostentam o seu nome, data e títulos régios (BORBA, 1976: 479). Efectivamente patrocínio daquele rei teve início quando ainda era Duque de Beja ao recolher fundos na ilha da Madeira (SILVA, 1990: 57). O mecenato real fez alterar novamente os planos da construção, ampliando-os. Mandou que a igreja tivesse três naves em vez de apenas uma e que a cobertura fosse em pedra e não em madeira, chamando o seu arquitecto, mestre Boitaca (Ibidem). Sem dúvida que o recém-coroado rei queria deixar um marco no início do seu reinado, ampliando uma obra iniciada pelo seu antecessor. Não podemos esquecer o facto de que este rei, não sendo descendente directo do anterior, mas sobrinho/cunhado, tinha a necessidade de afirmação do seu poder de modo a silenciar todas as vozes discordantes da sua legitimidade, incluindo aqueles que preferiam no trono o bastardo D. Jorge que, na condição de mestre de Santiago, era o senhor de Setúbal.

Os trabalhos continuaram a bom ritmo, de forma a que em 1496 estariam já reunidas as condições para a entrada na clausura das primeiras sete religiosa, jovens vindas de um convento em Gândia, Espanha (SILVA, 1987: 19 e GOMES. 2009: 55). Sabemos que no ano de 1500 as obras ainda não estavam completamente concluídas pois ainda se trabalhava nas “oficinas” e no claustro (Ibidem) e que o abobadamento se deve ter dado em 1508 (PEREIRA, 1995: 48), sendo que essa data marca o fim da primeira campanha de obras de mestre Boitaca. 



in BRITO, Mariana Almeida, Convento de Jesus (Setúbal) Arqueologia e História: Faiança decorada.
Disponível em: http://run.unl.pt/handle/10362/9280 [Consultado em 21 de Dezembro de 2013]

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