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sexta-feira, 11 de abril de 2014

O Artesanato Nacional e as Rendas de Setúbal

O artesanato das rendas portuguesas começou, há muito, a morrer e a soterrar-se nas ruínas do tempo. O pouco que dele continua a sobreviver caminha para lá, a passos largos, embora resistindo heroicamente aos baldões da sorte e aos duros empuxões da adversidade.
Em breve, as nossas rendas, a mais mimosa e fina manifestação artística da mulher da beira-mar e adorno, o mais belo e delicado das mulheres de Portugal, não passarão de uma doce e suave recordação a diluir-se e a desaparecer nas brumas da imensidade do passado.
Viana do Castelo, se não assistiu já à extinção total de tão popular arte, assiste, presentemente, à sua franca decadência. As feitoreiras do seu bairro piscatório da Ribeira seguiram o caminho das suas colegas setubalenses dos bairros de Troino e das Fontainhas.
Vila do Conde, hoje o nosso principal centro da manufactura de rendas, não conta mais de um milhar de rendilheiras entre profissionais e amadoras.
Peniche, outrora tão afamada pelos preciosos artefactos ali fabricados, embora ainda em actividade, parece começar já a sentir os efeitos da crise que, de perto, há muito, a espreita.
Em Sines e em Sesimbra, terras do distrito de Setúbal, que foram centros rendeiros, as rendilheiras desapareceram completamente.
Em Silves e em Castro Marim, terras do Algarve, o delicado e fino artesanato entrou já em acentuada decadência e em vias de desaparecimento certo; está refugiado em poucas mãos de senhoras, não profissionais, que o praticam em horas de ócio.
Em Nisa, um dos poucos centros rendeiros do interior do País, ainda que ali se produzam lindos exemplares de rendas de bilros, a indústria não tem prosperado; vive encostada à manufactura de bordados, esta mais progressiva e feliz, nas mãos das hábeis bordadeiras alentejanas.
Os bordados de Viana do Castelo, de Vila do Conde, de Guimarães, de Castelo Branco, de Tibaldinho, de Caldas da Rainha, etc. etc., que sorte os espera?
Onde pára a boa manufactura popular e caseira dos tapetes bordados de Arraiolos, tão evocativa da tapeçaria persa de antanho, da actividade multissecular da moirama entre nós, do trabalho conventual e da laboriosidade da mulher alentejana? E a cardagem, a fiação e a tinturaria necessárias à sua manufactura? Acolheram-se em oficinas, fundadas, a partir de 1916, para num esforço heróico as salvar de uma morte inglória; e na Escola Industrial e Comercial de Évora, tão cheia, como todas as nossas escolas técnicas, de honrosas tradições, na luta pela salvação dos nossos valores artesanais.
E a fiação e a tecelagem manual do linho e da lã, de tão fundas raízes na tradição popular portuguesa? Batidas, há muito, nas cidades e nas vilas, refugiaram-se, quase exclusivamente, nos mais humildes casebres disseminados por alguns distritos nortenhos. A espadela, a roca e o tear manual são já hoje peças de valor etnológico. E nada mais! Por toda a parte, a «tecedeira», a artífice que trabalhava no aconchego do lar, cedeu o lugar à «teceloa», a mulher que trabalha na fábrica.
Há quanto tempo a mulher da serra de Montemuro, quiçá aquela que se conserva mais arreigada a velhos usos e costumes, deixou de descer, por velhos e incómodos atalhos, fiando, fiando sempre para não perder tempo, a caminho do mercado de Lamego, com a roca atochada de alvo linho? Ainda por lá se pratica uma fiação primitiva, de processos pouco distanciados dos pré-históricos, é certo, mas só nos mais humildes casebres desgarrados e perdidos nas encostas da serra. A mulher ainda por lá manufactura o burel para a capucha, tece o linho e a estopa para a camisa. E pouco mais pelo nosso Portugal fora!  
E as mantas de Terroso, tão antigas que impossível se torna dizer desde quando os homens primeiro, as mulheres e as crianças depois as começaram a urdir de trapos velhos, ou novos, de qualquer cor, de linho, de estopa, ou de lã, de tudo, até de tranças de velhos chinelos para aconchego do rico, do remediado e do pobre, para reposteiros, para alcatifas, para tapetes e para cobertores. Ainda se fabricam, é verdade, até nas freguesias próximas do lugar de origem, em Amorim, em Beiriz etc., mas sem grandes perspectivas de largo futuro.
A velha e popular culinária, a boa culinária portuguesa, saborosa, bem cozinhada e bem adubada, anda por aí adulterada e de braço dado com as mais variadas «mayonnaises» de incertas e duvidosas origens.
E a nossa doçaria regional, sempre tão desejada e apetecida, tanto nas festas familiares como nas romarias, onde nunca faltava, de mistura com música, bailados, foguetes, alegria, muita e ruidosa alegria, já quase não passa de uma pálida lembrança.
Tudo que, na nobreza do trabalho, foi ocupação dos nossos maiores e, nas horas de folgança, seu encanto e seu deleite, vai passando e vai esquecendo, sem que, com as substituições inventadas e com todos os produtos de criação nova, sintéticos e não sintéticos, nós sejamos mais felizes do que as gerações que nos precederam, sem que a humanidade viva mais segura na esperança de melhores dias.
Ponha-se aqui um ponto final que a digressão pelas tradicionais artes domésticas e por essas terras além já vai alongada e afastada do ponto de partida: as afamadas rendas de Setúbal.
E nada se diga do artesanato exercido pelo homem: da indústria de filigrana de Gondomar, de Valongo, de Rio Tinto, de Fânzeres, etc., dos chocalhos de Alcáçovas, da cerâmica de Estremoz, de Barcelos, e de tantas outras terras, da nossa cantaria artística, que lembra os mestres canteiros que ergueram e rendilharam as nossas catedrais, os nossos mosteiros de Alcobaça, de Aljubarrota, dos Jerónimos e de Mafra, da imaginária, a de barro e a de madeira, dos brinquedos, dos cestos, das esteiras, das alcofas, da ferrajaria — que sei eu! — de tudo, de tanto que seria um nunca acabar de coisas belas, lindas, portuguesas, tão portuguesas, tão nossas de séculos e séculos. Bem merecem a nossa admiração e —por que não? — a nossa veneração!
Ao revigoramento do progresso económico e industrial, lá fora, em países de acentuada tradição artesanal, como a Suécia, a Alemanha, a Itália e a Suíça, está correspondendo uma notável protecção às artes populares.
Os benefícios da produção em série não excluem, antes os reclamam, os do trabalho individual e, concomitantemente, os das indústrias domésticas, que, não exigindo investimentos de capital, libertam este para empreendimentos de grande vulto. Uns e outros convergem na valorização da mão-de-obra, da matéria-prima, que o mesmo é dizer da riqueza nacional.
O artesanato nacional, nos seus múltiplos aspectos, tão rico de manifestações artísticas, oferece reais possibilidades de vir a constituir uma inesgotável fonte de receita, não apenas para as classes sociais de economia mais débil, mas também para a economia nacional, quando bem orientado no sentido de melhorar o produto, com vista aos mercados nacionais e estrangeiros.
É altamente meritória a tarefa iniciada pela Secretaria de Estado do Comércio, através do Fundo de Fomento de Exportação, da realização de inquéritos sobre os problemas afectos à exportação e comercialização dos produtos artesanais, com vista a um mais perfeito e pormenorizado conhecimento das suas possibilidades económicas e sociais. Os problemas característicos do nosso artesanato e as formas de organização que mais importam à sua defesa e à sua expansão têm merecido o mais desvelado carinho de quantos se têm debruçado sobre tão importante manifestação de actividade, que tanto importa desenvolver e valorizar.
Nas feiras de Chicago, Bruxelas, Paris, Milão, Viena, Estocolmo, Munique, Hamburgo, Colónia, Lausana e outras, realizadas a partir de 1950, o artesanato português marcou já lugar de notável relevo.
As exposições recentemente realizadas em Barcelos e em Évora foram incontestáveis revelações das possibilidades da nossa arte popular, do seu valor económico, social e educativo. Santarém revelou já o valor das suas actividades artesanais. Está prevista a organização, no próximo ano, em Lisboa, de uma grande exposição destes produtos.
O Fundo de Fomento de Exportação iniciou já os estudos preliminares convergentes à valorização da produção artesanal: os da formação profissional dos artífices, os da sua adaptação aos progressos técnicos, o da escolha dos modelos e o da criação de um sistema de crédito.
À nossa rendaria nacional, uma das mais ricas manifestações da arte popular, está, certamente, reservado um lugar de destaque no ressurgimento das nossas actividades tradicionais e, concomitantemente, na valorização do trabalho da nossa gente.
O revigoramento do trabalho artesanal, em alguns casos, e o seu ressurgimento noutros, não é apenas — se o fosse já seria muito!-—um problema de sobrevivência de manifestações folclóricas, de interesse etnológico e artístico, mas sem valor económico e social, tal como os seus produtos não têm, apenas, uma função meramente decorativa. O interesse etnológico, o artístico e o decorativo não excluem, antes completam, o seu valor económico e social.
Ao peso de cento e quarenta mil contos, em 1960, logo acrescido de mais cento e dezasseis mil, em 1961, na nossa balança de comércio, provenientes da exportação de bordados da Madeira, há a acrescentar o seu valor incalculável na sobrevivência das manifestações artísticas do nosso povo. Não se dirá que sem o seu interesse decorativo, a característica arte da mulher madeirense teria pesado tanto...
Ainda que de valor folclórico, não são as peças artesanais, simplesmente decorativas, valores traduzíveis em divisas estrangeiras, quando, inteligentemente, canalizadas para a exportação?
O estrangeiro, que nos visita, procura sempre com avidez peças caracteristicamente portuguesas e de feição acentuada- mente popular.
Não se confunde trabalho artístico, de execução, forçosamente, demorada e paciente —- o artesanato — com produção vertiginosa, em séries, que se contam por milhares por minuto — o mecânico. O primeiro, individual, moroso, inteligente, meditado, concebido e executado pelo homem com toda a pujança da sua actividade consciente, exprime as características próprias e inconfundíveis de um povo. É base de nacionalismo e força de coesão de patriotismo. O segundo, o da máquina estonteantemente transformadora da matéria-prima em objectos de aplicação prática, mas devastadora implacável das qualidades e das manifestações artísticas do trabalho individual, desnacionaliza e confunde.
O aproveitamento e a valorização da capacidade de criação e de execução do nosso povo, longe dos grandes centros industriais e da tirania da máquina, fixando-o à terra, é o meio mais eficaz de combater o urbanismo que tanto aflige a nossa economia rural.
Com um ensino simples e atraente levado até ao seio dos bairros piscatórios de Troino e das Fontainhas, com a valorização do produto e com o afastamento da acção nefasta dos intermediários poderá, um dia, nas mãos das mulheres e das filhas dos pescadores, operar-se o milagre da ressurreição da mais fina e mais delicada arte setubalense. Foi nestes bairros que esta nasceu, progrediu e morreu. Só neles poderá renascer, qual a mítica Fénix, das próprias cinzas. E, porque só aqui tem o seu ambiente próprio, só aqui as netas das antigas rendiIheiras, aquelas que, por não encontrarem trabalho na indústria conserveira, permanecem inactivas, poderão vir a retomar, uma após outra, a arte tradicional da mulher do homem do mar.
Ressuscitada a manufactura da rendaria setubalense, para que possa alcançar uma melhoria do produto, por forma a poder manter-se e progredir, precisa de novos desenhos, de novos «piques», que a libertem da repetição infinda dos mesmos modelos. Arte não é repetição, como criar não é copiar. A repetição conduz ao automatismo, à mecanização e, até, à perfeição, é certo; mas a arte, porque além do mais, é criação, tem de ultrapassar hoje quanto ontem foi julgado perfeito. Assim, o artesanato da nossa rendaria precisará de novos desenhos, que respeitem o tipo e a técnica tradicionais, sem inovações que adulteram, sem imitações que confundem. Só assim o produto poderá entrar, com vantagem, na luta comercial, com os seus similares nacionais e estrangeiros; só assim a rendaria poderá voltar a constituir, ainda em nossos dias, legítimo motivo de orgulho da cidade do Sado, onde não faltam verdadeiras vocações artísticas, e valiosa fonte de receita para os lares menos protegidos pela fortuna.
Quantos milhares de braços de mulheres, ainda mesmo das mais débeis, e até de crianças pobres, não poderão vir a ter na indústria rendeira onde aplicar a sua actividade e colher proventos para a economia familiar?
Que de preciosidades da rendaria setubalense se não guardam, ainda, por aí, quais mimosas relíquias evocadoras dos mais doces momentos, em casas, onde ainda subsiste o culto do passado! Simples farrapos, algumas nem por isso deixam de ser autênticas peças dignas de figurarem nos escaparates do Museu da Cidade! Mimosos enfeites que foram de pomposas vestes sacerdotais, de roupas litúrgicas, de bragais domésticos, ou de roupas interiores, estão condenadas ao desaparecimento certo, se antes não forem recolhidas, estudadas, classificadas, catalogadas e expostas à admiração do público no velho Mosteiro de Jesus.
Ali, naquela casa, que foi lugar de recolhimento, de meditação e de oração, erguida, no século XV, pela piedade de Justa Rodrigues Pereira, onde enclausuradas monjas capuchas de Santa Clara, no meio de fervorosas preces, teceram as mais aprimoradas rendas para as mais pomposas roupas sacerdotais — amitos, alvas, corporais, sanguíneos, manutérgios, palas, sobrepelizes, toalhas etc.-—usadas nas igrejas da vila, durante os ofícios divinos, ficariam agora bem, a atestar a arte e a laboriosidade da mulher setubalense e a deleitar o visitante mais exigente, os farrapos que ainda nos restam de delicadas espiguilhas, rendas, entremeios e franjas, que adornaram roupas interiores, lençóis, travesseiras, almofadas, fronhas, cortinados, toalhas de rosto e de mesa, panos de tabuleiro, «napperons», toalhinhas de chá e lencinhos de senhora -— que sei eu! — toda uma infinidade, todo um mundo de relíquias, de mimos, de doces e queridas recordações, que são já hoje mais da cidade, do seu passado e das suas grandezas do que de quantos, legitimamente, as herdaram dos seus maiores e, ciosamente, as guardam e escondem, sem vida e quase sem significação, dos olhares ávidos dos investigadores e dos estudiosos.
Se nos convencermos da inutilidade da conjugação dos nossos esforços para o ressurgimento de tão fino e delicado artesanato, ao menos, recolhamos, com mãos piedosas, no Museu da Cidade, relicário das nossas grandezas passadas, em justa e merecida homenagem à memória das humildes e anónimas artistas setubalenses, que tanto afamaram e tanto dignificaram o nome desta terra, todos esses farrapos das teias, que suas mãos urdiram, com amor e carinho, e andam agora para aí dispersas, abandonadas e esquecidas. Sim! Justa e merecida homenagem à memória das humildes e anónimas artistas setubalenses. Bem a merecem!

in COSTA, José Marques da, Rendas de Setúbal, Edição da Junta Distrital de Setúbal, 1962.
http://setubaldigital.blogspot.pt/2014/03/rendas-de-setubal.html

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