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quarta-feira, 14 de maio de 2014

A Procissão do Corpo de Deus


(Como se apresentou em Setúbal no anno de 1867)

Patria do meu nascimento,
Noutro tempo tão ufana,
Quanto foi a causa tyranna
Do teu grande abatimento?!
Qual foi o monstro sangreto,
Serm paixão nem caridade,
Que, com falsa liberdade,
Os teus filhos captivou
E innocentes mil matou
Com o ferro da iniquidade?!


Os teus foros de nobreza,
Os teus homens applaudidos,
Já andam, hoje, envolvidos
Nos andrajos da pobreza!
Bem mostra a tua baixeza
O alto grau de que cahiste!
Tudo em ti é scena triste,
Já nem ha compração!
Basta olhar p'ra a procissão
Chamada de Corpus-Christi.

Vi as ruas aredas
Com areia cor de barro,
Toda a noite andou o carro
Deitado areia às carradas.
Tantas janellas armadas,
Tantos archeiros fardados,
E com gastos tão pesados
Que a camara está fazendo...
P'ra talvez ficar devendo
Algum anno aos engeitados.

Seis cavallos, enfeitados
De laços de fita e flores,
Seguindo seus conductores,
Pelas redeas enfreados;
De soberbos e encrespados,
Punham se a raspar o chão;
De tão pouco devoção
O Palmella bem dizia
Que, por seu gosto, não queria
Cavallos na procissão.

Seguiu o homem de ferro
C'uma valente armadura,
Mettendo com tal figura
Aspectos de mouro perro.
Erguia-se ao som do berro,
Quando ouviu algum bulha;
Era um chefe de patrulha
Com armadura cinzenta,
Pr'a fazer guerra cruenta
A's espingardas d'agulha

Seguia-se o nosso santo
De lança e escudo armado
De chapeu agaload
Que algum tempo valeu tanto!
As joias e o rico manto
Vendeu tudo de uma vez, 
E, como brioso inglez,
Poz tudo em reaes seguros,
Para valer aos apuros
De um governo portuguez.

Seguia-se o terno pagem
De capacete dourado,
De seu mantinho encarnado
E caldeirinha de viagem;
Ao pé, ia a equipagem
De meia branca e calção,
Casaca de alto canhã
Com galões de trinta cores;
Eram os quatro embaixadores
Que vieram do Japão.

Seis pequenas irmandades,
Todas com tal desmazêlo,
Que bem mostra o pouco zelo,
Que têm pelas divindades.
De tantas rivalidades
Até Deus é testemunha!
Faz-se o mal e a caramunha,
Tramam-se taes rebeldias.
Que até já nas confrarias
Temos branca e negra unha.

Já d'aqui podemos ver
Quemao palio ha de pegar;
Um tão honroso logar
Vão-n'o deixando perder!
Já é preciso escolher
Braços fortes da pobreza;
Porque hoje a nossa nobreza
No marasmo em que se poz
Só vae tratando do arroz,
Cada vez tem mais fraqueza.

Pois de tanta auctoridade
Que nossa sorte nos deu,
Só neste acto appareceu
A que governa a cidade!
Os homens de probidade
Tiveram vergonha e medo!
Não houve onde pôr o dedo,
Porque até os camaristas
Andavam deitando vistas
Onde plantar o arvoredo.

A busina roncadeira,
A que aqui chamam charanga,
Que acompanha qualquer panga
Em orgia ou brincadeira,
Foi a leal companheira
Nesses tão breves insntates,
Que, por lindos vonsoantes
E peças de realejo,
Fez de todo este cortejo
Uma choldra de ceifantes.

A guarda foi de tenente
Que escoltou tanto careca,
Pois de Tancos a charneca
Não dispensou cá mais gente.
O povo ficou contente
De vêr taes caricaturas!
E, em vez de noites escuras(1)
Nos promette agora alguem
Que, p'ra procissão que vem,
Teremos mais imposturas.

(1) O emprezario da iluminação a gaz tinha fallido e a fabrica fechára.

in Eusébio, António, Versos do Cantador de Setúbal. Lisboa 1901

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