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quarta-feira, 18 de junho de 2014

Setúbal, Palmela e Azeitão vistas por estrangeiros


Título: Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros
Subtítulo: A Época de Bocage
Organização, Prefácio e Notas: Daniel Pires
Colecção: Clássicos de Setúbal nº 3
Editor: Centro de Estudos Bocageanos

A presente obra visa coligir os testemunhos de estrangeiros que visitaram Setúbal, Palmela e Azeitão na época de Bocage, situando-se, deste modo, o seu escopo temporal na segunda metade do século XVIII, mais concretamente entre 1766 e 1800.
Nesta antologia encontram-se textos de oito autores: Dumouriez e Marquês de Bombelles (franceses), Janet Schaw e Arthur Costigan (escoceses), James Murphy (irlandês), Heinrich Friedrich Link (prussiano) Carl Israel Ruders (sueco) e José Cornide (espanhol).

Relevância dos relatos redigidos por estrangeiros

O terramoto de 1 de Novembro de 1755 foi de uma violência inaudita, tendo-se feito sentir as suas ondas de choque igualmente em África e na Europa Central. Tal hecatombe despertou natural solidariedade e extrema curiosidade. Inúmeros estrangeiros demandaram então o nosso país, designadamente militares, artistas, diplomatas, cientistas, arqueólogos, reliogos, comerciantes e escritores do jaez de Byron, Robert Southey, Link e William Beckford.
Acresce ainda que, na época, de acordo com os princípios do Iluminismo – consignados nas obras de filósofos como Voltaire, Rousseu, Diderot, d’Alembert e tantos outros, bem como nas páginas de um marco miliário civilizacional, a Enciclopédia -, as viagens eram consideradas essenciais para a formação integral do indivíduo. Permitiam-lhe, advogava-se então, capitalizar conhecimentos científicos e ter consciência clara de uma das características fundamentais do ser humano e do “livro” da natureza, no século XVIII racionalista justaposto à Bíblia: a diversidade; facultavam-lhe, por outro lado, uma visão dialéctica da realidade, que se opunha à escolástica e à imobilidade dos regimes ancilosados, os quais assentavam numa hierarquia rígida; propriciavam ainda a formação de uma perspectiva relativista da saga da humanidade que subvertia “verdades indiscutíveis”, postulados imemoriais, tradições seculares. 
Recordemos que, no que diz respeito à literatura viagens, no século XV, foi predominantemente descrita a Terra Santa; no século XVI, a atenção centrou-se América e na Turquia; no século XVII e no seguinte, no Oriente, nomeadamente na China; no século XVIII, no Pacífico, sobressaindo as viagens de James Cook, na Itália e nos países da Península Ibérica. Aliás, o "inventário" da natureza foi feito metodicamente por mar, terra e ar, registando-se, neste domínio, em 1783, as primeira ascensões aerostáticas, protagonizadas pelos irmãos Montgolfier, Pilatre de Rozier, Vincenzo Lunardi e tantos outros, continuadores do visionário Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que se viu perseguido pela Inquisição e veio a falecer, aos trinta e nove anos, durante a sua precipitada fuga, em Toledo.
Os relatos dos escritores estrangeiros sobre Portugal são de manifesta relevância. Em primeiro lugar, por terem sido publicados nos seus países de origem, onde a censura, se existia, não interferia minimamente quando se tratava de textos sobre regiões consideradas remotas. De idêntico estatuto editorial não usufruíam os autores nacionais: estavam sujeitos a uma particular vigilância, materializada sucessivamente, na segunda metade do século XVIII, pelo Santo Ofício, pela Real Mesa Censória 1768-1787), pela Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros (1787-1794), pela Junta da Directoria dos Estudos e Escolas do Reino - constituída ceio Santo Ofício, o Desembargo do Paço e o Ordinário da Diocese (1794-1797) - e pela Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura (1797). Em segundo lugar, porque as mencionadas narrações constituem matéria- prima úbere para a reconstituição social, política e económica da época.
Muitos estrangeiros nos visitaram: uns, preconceituosos, outros, isentos e objectivos. Os primeiros, autistas, distorceram a realidade portuguesa, convictos de que os valores universais eram exclusivamente os perfilhados nos seus países, como, por exemplo, Twiss, Dumouriez, Carrère e Costigan. "Se a realidade não se identifica com a minha teoria, tanto pior para a realidade", terão cogitado. Permaneceram pouco tempo em Portugal, desconheciam a língua e a cultura, conviveram insuficientemente com a população, simplificaram, fizeram generalizações abusivas e apressadas; alguns, como Giuseppe Gorani, Dumouriez Vincenzo Lunardi e Arthur Costigan, foram maltratados pelo superintendente do serviço de estrangeiros, "um Estado dentro de um Estado", o omnipresente Pina Manique, que os olhava de sobrolho franzido, ou expulsos, quer pelo todo-poderoso Marquês de Pombal, quer pelas autoridades emergentes do seu afastamento compulsivo, em Março de 1777, na sequência do falecimento de D. José.
Os segundos, temperando dialecticamente a sabedoria com a prudência, tentaram compreender a especificidade portuguesa, descrevendo-a de forma multímoda, isenta, abrangente, seminal, em consonância com a máxima de Terêncio: "Tudo o que é humano me toca profundamente". Referimo-nos, sobretudo ao escritor Beckford, ao pastor protestante Ruders, ao botânico Link e ao arquitecto Murphy. A talhe de foice, recordemos que, segundo cremos, a melhor caracterização de Bocage foi feita por um escritor inglês, autor de um notável romance, curiosamente escrito em francês, intitulado Vathek: William Beckford. Na obra Italy with Sketches of Spain and Portugal alude a um jantar, realizado, no dia 8 de Novembro de 1787, em sua casa, ao Campo das Mouras, acompanhado por Bocage e por outras individualidades, entre elas Frederico Guilherme de Sousa, ex-governador de Goa, o conde de Lucatelli e o marquês de Marialva; nesse apontamento manifestou a profunda admiração e a empatia que a postura do poeta lhe provocou:
« [...] um mancebo pálido, de compleição fraca, de olhar e modos excêntricos, o Sr. Manuel Maria, a mais fora do comum, mas talvez a mais original as criaturas poéticas formadas por Deus. Sucedeu achar-se numa daquelas disposições de espírito, de entusiasmo e de exaltação, que à semelhança do sol no pino do Inverno, brilham quando menos se espera; milhares de ditos agudos, de expansões de alegria zombeteira, de repentes satíricos, disparava-os de chofre, de modo que todos andávamos a tombos com riso; mas, quando começava a recitar algumas das suas composições, nas quais a profundeza de pensamento se mistura com os rasgos mais patéticos, senti-me abalado, comovido. Em verdade, pode dizer-se que este carácter extravagante e versátil possui a verdadeira varinha de condão, com que, a seu bel-prazer, anima ou petrifica».
Dois dos autores aqui antologiados não estiveram em Portugal por uma questão de solidariedade, de curiosidade, por motivos profissionais ou por se encontrarem em sintonia com os ideais do lluminismo. Vieram em missão de espionagem militar. Referimo-nos a Charles Dumouriez e a José Cornide, enviados respectivamente por Luis XV e por Godoy para melhor conhecerem o sistema defensivo do nosso país.
Os testemunhos subscritos por Cornide e pelo Marquês de Bombelles nunca tinham sido publicados em português, tendo sido traduzidos pelo organizador deste volume.

Daniel Pires

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