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quarta-feira, 20 de abril de 2011

Os meus serviços públicos

Quando eu contava vinte annos,
Fui da guarda nacional
Exp'rimentei, por meu mal,
Mil falsidades e enganos.
Soffri mil perdas e damnos,
Nem d'elles lembrar-me quero!
E, quando o descanço espero,
Acabada esta milicia.
Vou p'ra cabo de policia.
Foi o pago que me deram!

Sete annos, por desgraça,
Andei servindo de trôlha
Que a maldita lei da rôlha
Na bocca me pôz mordaça;
Andei servindo, de graça,
De beleguim e de espião,
Sem ganhar soldo nem pão,
Fardando-me á minha custa,
E por fum de tudo, á justa,
Fui parar num batalhão.

Oito annos, com verdade
Andei, por desgraça minha,
Servindo em segunda linha,
Estragando a mocidade.
Já mais entrado na edade,
Chegando aos quarenta e trez,
Sirvo de novo de entremez
Em tudo quanto aqui pinto:
Sendo o batalhão extincto,
Vou p'ra a policia outra vez!

Agora, velho e cançado
Té falto de vista estou,
E d'esta sorte inda sou
Para a policia nomeado!
Neste lastimoso estado
Ninguem tem de mim clemencia,
E, se alguma alta excellecnia,
Por quem é, não me valer,
Servirei até morrer,
Armado de paciência.

Nesta minha freguezia
Sempre escapa pela malha
Muito estafermo de palha
Que p'ra nada tem valia.
Só eu, cheio de agonia,
De familia roedeado,
Por ser pobre mal fadado,
Ninguem me serve d'empenho;
Como padrinho não tenho,
Morro sem ser baptisado.

Um terçado ferrugento,
Uma sebenta japona,
Um boné velho de lona,
É todo o meu fardamento.
Neste estado tão nojento,
Meus males ando sentindo,
Tropeçando ou já cahindo;
E ainda, por meus peccados,
Vejo andar uns afilhados
Da minha desgraça rindo!

Se acaso um homem adoece
De qualquer constipação,
É, devido a esta razão,
Ás ordens não apparece,
O regedor se enfurece
E, p'ra mostrar seu poder,
Manda-me logo prender;
E, cahindo na esparrella,
Nem ao menos o Palmella (1)
Acho p'ra me defender.

(1) Era o redactor do Jornal de Setúbal

in EUSÉBIO, António, Versos do Cantador de Setúbal, Lisboa 1901

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