.

.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Análise à obra "Torre das Cabaças (Santarém)" de João Vaz

João Vaz
Torre das Cabaças (Santarém)
1888
Óleo sobre madeira
As. | Dat: "Vaz / 88" [canto inferior esquerdo]
A. 46, 2 cm L. 37, 7
 Invº nº 84.722


Localizada no coração do centro histórico de Santarém, a Torre das Cabaças ou Cabaceiro foi construída, em meados do século XV, para albergar o relógio do concelho, resultando da transformação de uma torre do recinto de muralhas que protegia a antiga vila. Embora sujeita, ao longo dos tempos, a sucessivas alterações, manteve a estrutura original, em
alvenaria de pedra, com a forma de um monumental paralelepípedo. O nome pelo qual a torre-relógio se tornou conhecida, pelo menos a partir dos finais do século XVIII, advém dos recipientes cerâmicos em forma de cabaças existentes sobre a trempe de suporte do sino de bronze – o actual data de 1604 – em que são tangidas as horas. A tradição associou desde tempos antigos essas cabaças, utilizadas para a amplificação do som do sino, às cabeças ocas dos vereadores da Câmara, pelo que o Cabaceiro, principalmente a partir da época romântica, passou a ser considerado o símbolo por excelência da própria cidade, dando origem a toda uma ampla iconografia. Para os artistas que vinham conhecer os aspectos pitorescos da velha Santarém, representou mesmo um tópico obrigatório.

Foi o que sucedeu com João Vaz, infatigável perscrutador da terra portuguesa, cujos monumentos ocupam grande destaque na sua vasta  e diversificada  produção. Em 1885, ou pouco antes, dedicou vários trabalhos a trechos de Santarém, incidindo um deles na envolvente da Torre das Cabaças, vista dos lados da igreja da Graça, a sobressair do casario. Mais tarde, em 1888, voltou a escrutinar os recantos da cidade. Esta deslocação ficou a dever-se ao facto de ter ajustado com a Junta de Paróquia de Alpiarça, na margem esquerda do rio Tejo, pelo preço de 135 000 réis, o restauro de sete telas, alusivas aos Martírios de Cristo, provenientes de um convento extinto de Lisboa e oferecidas pelo cardeal patriarca D. José Simões Neto para a nova igreja da localidade. Terá sido nos intervalos do trabalho de recuperação das telas antigas, aceite então por muitos artistas como um complemento da actividade profissional, que Vaz pintou de novo o Cabaceiro, observando a partir da artéria vinda das Portas do Sol (actual Rua 5 de Outubro).
A obra figurou na 8.ª Exposição de Arte Moderna, do Grupo do Leão, realizada nesse ano de 1888 em Lisboa, em cujo catálogo aparece com a designação, errada, de Santa Clara, Santarém. Foi reproduzida pela revista Occidente, logo nos inícios de 1889, entre as ilustrações que acompanham uma crónica de Monteiro Ramalho, mantendo-se o equívoco da identificação. Terá sido adquirida naquela ocasião por José Relvas, que talvez conhecesse o autor dos tempos em que este trabalhou em Alpiarça. Num dos inventários da Casa dos Patudos, em 1929, a peça consta assim:
“Quadro a óleo «A Torre das Cabaças», em Santarém. Este quadro pertence á primeira phase do artista, na época do «Grupo do Leão», que revolucionou a pintura portugueza sob a influencia da escola franceza de 1830 e dos «impressionistas» francezes.?
João Vaz fixou a imagem do Cabaceiro num dos ângulos mais propícios à leitura da sua mole e da sua integração no tecido urbano – em que se destacam os volumes das igrejas de São João de Alporão, fábrica românica de transição do século XII para o XIII, à esquerda, e de Santa Maria de Marvila, vasto edifício de feição manuelina cujas obras terminaram por 1530, ao fundo. Tal escolha, aliás, perdurou em muitas mais ocasiões, como as fotografias de Alvão e outros mestres de renome. No terreiro do plano inicial, sombrio, ressalta uma casa térrea, de traços rústicos, caída de branco e com barra de ocre carregado de vermelho. A presença, nas suas imediações, do carro de bois com cobertura de canudo, carregado de palha, de que uma mulher transporta uma braçada, sublinha a noção de ruralidade dentro do meio urbano. Segue-se outro plano luminoso, delimitado pela diagonal de contorno da sombra que, em harmonia com o limite mais escuro do solo, apanha a chaminé e o pátio desta modesta habitação, o ressalto do corpo da casa do relojoeiro e, principalmente, faz destacar a torre. Um terceiro plano estende-se até à igreja do fundo, acompanhando o encadeamento dos edifícios sobre a rua e o jogo de sucessivas áreas de luz e de sombra projectadas sobre eles.
Não obstante a perfeita sequência de planos, típica da sua maneira, o pintor priveligiou, devido à peculiar profundidade do espaço em causa, uma análise da perspectiva baseada sobretudo na convergência de diferentes linhas, e deu-lhe como ponto de fuga o cruzamento visual, já sugerido pela colocação oblíqua do carro de canudo, surge iluminado com maior intensidade e habitado por um vulto masculino, acabando por formar uma “composição dentro da composição” Porém, o que mais se impõe na leitura do conjunto é o volume, acentuadamente vertical, da Torre das Cabaças. Vaz não só a destacou contra o céu de um azul muito claro. Quase uniforme, tocado por apontamentos suavíssimos de nuvens, típico de Santarém – e amiúde presente na obra do artista -, mas que tem um ar algo inverosímil, como lhe acentuou a
Gravura publicada em Occidente, 12º Ano,
XII, nº 366, Lisboa, 1889, p. 44, col. B
ortogonalidade, através da escassa marcação das diagonais, para realçar o seu carácter monumental. Se a síntese daqui resultante corresponde a um intuito mais amplo de geometrização do espaço urbano, não deixa de ser importante sublinhar o desejo de pôr em paralelo, a distância, os dois campanários, o do Cabaceiro e o de Marvila, distintos quanto a morfologias e a funções, mas ambos progredindo na direcção do alto. A dualidade de processos que aqui encontramos leva o observador a concentrar-se, à primeira investida, no plano primordial, sendo depois conduzido para a leitrua da sequência da via, bordejada de construções, que o prolonga. Irrompe daqui um efeito dinâmico, muito apto à valorização da amplitude espacial. No mesmo sentido aponta a técnica pictórica. Os diversos elementos obdecem a uma caracterização munuciosa, como se vê pelo trabalho do sino e da armação com as cabaças, quase pintados em filigrana, numa transparência cheia de delicadeza. Similar efeito apresenta o candeeiro, alimentado a azeite, que antecede a igreja de São João, suspenso no ar, parecendo brotar do nada (curioso documento de um sistema de iluminação pública introduzido no final da década de 1850 e que ainda sobrevivia). A pincelada, todavia, é expressiva e adquire até, onde escasseiam as particularidades adequadas para lhe servirem de suporte, um pendor vibrante. No tratamento lumínico , sujeito a tamisações perfeitas, conforme se tornou característico do artista, avulta intuitivamente a harmonia entre as superfícies de cores mais quentes, em que campeiam os ocres, e as mais frias, amplificadas devido à extensão homogénea do céu. Preso ao Naturalismo realista que João Vaz cultivou com pertinácia durante os primórdios da carreira, o conjunto transmite um macio subtil sentimento de vida, bem enraizado na poética do pintor.

in
FALCÃO, José António, XIX Século XX: Momentos da Pintura Portuguesa na Casa dos Patudos

0 comentários:

Enviar um comentário