Nos anos anteriores à instauração da Ditadura Militar, a
cidade de Setúbal encontrava-se mergulhada numa profunda crise económica,
social e política.
As características específicas da cidade, com uma
mono-indústria sobredimensionada e dependente de mão-de-obra barata e de
matéria-prima inconstante e aleatória, convocam o movimento operário para uma
ainda maior radicalização, que era já perceptível no elenco das lutas que
tinham estalado ao longo de ciclos sucessivos, gorada que tinha sido a
esperança que o novo regime suscitara nos tempos prévios à sua implantação.
Deste modo, tal como no resto do país, a sociedade
setubalense, num extenso período anterior ao 28 de Maio, encontrava-se submersa
por lutas sociais intensas, com um operariado reivindicativo, organizado,
experiente e influenciado pelas ideologias revolucionárias. O sectarismo
político exacerbado entre as várias facções republicanas contribuía, de forma
importante, para a total ausência de perspectivas em que a cidade parecia
atolada.
A cidade vogava desde há muito, ao sabor de greves violentas
que se eternizavam perdurando por períodos espantosamente dilatados.
A análise dessas greves, por vezes brutalmente reprimidas
pela polícia, comprova a existência de uma rede fortíssima de solidariedade,
tecida por um operariado composto por gerações sucessivas que trabalhavam nas
fábricas, gerações que sucessivas que trabalham nas fábricas, gerações que se
prolongam e se auto-referenciam, que se interajudam nas artes do trabalho e nas
lutas, numa evidente proximidade que propicia unidade de acção e sobretudo, um
inequívoco sentimento classista a que ideologias libertárias de pendor
fortemente radical dão alento. Estas várias gerações de famílias inteiras, de
vizinhos e vizinhas, de parentelas várias e amizades sólidas, na hora de actuar
contra o arbítrio patronal ou policial, agem como um só corpo, cientes de que a
sua força e capacidade de afrontamento residem precisamente nessa agregação
solidária de forças.
Do lado do patronato a situação era simétrica. Se o
proletariado recorria à greve, os patrões ameaçavam com o lock-out se a
mão-de-obra conserveira e das outras actividades estava organizada
sindicalmente, também os donos das fábricas gravitavam e se uniam em torno das
associações de classe.
A violência instalara-se na cidade, sendo que dissidências
evidentes, e outras menos evidentes, são por vezes resolvidas pelo argumento da
arma de fogo.
Episódios como o do redactor principal do jornal A
Indústria, também patrão conserveiro, contra o qual são disparados dois tiros
por um operário em plena Av. Luísa Todi, ou ainda o tiroteio entre os
dirigentes dos soldadores e os moços das fábricas, povoam o quotidiano destes
dias em que a cidade, cansada de retóricas, havia mergulhado.
Por outro lado, o PRP vai conhecer, também aqui na cidade,
várias lutas, cisões e recomposições partidárias que nem sempre expressam
apenas divergências ideológicas e políticas, antes sendo, por vezes, formas de
operacionalizar a luta pelo poder a nível local.
O PRP setubalense espelhará, deste modo, a instabilidade e o
oportunismo que o Partido Republicano assumirá a nível nacional, ensaiando
episodicamente alianças tácticas pouco claras como as que o apetite pelo poder
sempre proporciona, de que são exemplo as eleições municipais de 1922 e de
1925.
Face a esta situação não é de admirar que o golpe militar de
1926 fosse visto pela cidade e pelo seu operariado como mais um incidente
golpista, apenas mais um entre os outros todos que se tinham sucedido inglórios
e inconclusivos, mais um acontecimento temerário que de novo faria tremer a
paisagem política de anos sucessivos de greves reprimidas, de fábricas fechadas
pelos patrões em nítida retaliação de insubmissões operárias, de prisões
arbitrárias de dirigentes sindicais, de manifestações que se saldavam em
mortos, feridos e desalento, enfim, era mais um movimento militar que passaria
ao largo e seria denunciado posteriormente pela retórica dos jornais afectos ao
regime.
Durante 16 anos o operariado setubalense tinha-se habituado
aos confrontos com a GNR e os militares que desde sempre lhe tinham povoado as
lutas, acorrendo céleres ao chamamento dos patrões.
A presença de militares na vida pública que este específico
golpe evidenciava não era, até, eventualmente, mais visível do que já tinha
sido noutras situações de conflito.
O movimento operário setubalense estava exausto, e não tinha
nenhuma razão para se preocupar com mais um golpe de estado que lhe parecia,
aliás, bastante distante.
Logo em 31 de Maio de 1926 a guarnição militar de Setúbal
adere à ditadura, o mesmo acontecendo com a GNR.
Ao nível das principais associações de classe não são
tomadas quaisquer iniciativas no sentido de contrariar este desfecho político.
A nítida apatia face à nova situação que ia fermentando era o corolário
imediato desse factor subjectivo de desesperança, cansaço, e fundamentalmente
do descrédito a que a República tinha chegado.
De igual modo, também outros sectores da população onde a
República tinha sido acolhida com afecto, os comerciantes, os pequenos
industriais, os “mangas de alpaca” administrativos, essa base de apoio
republicana e citadina que existia também na cidade de Setúbal, e que anos
antes lhe enxameara as ruas ao som das filarmónicas festejam o fim da
Monarquia, estava agora cansada das tropelias consecutivas do regime que perdia
forças, dos golpes de estado, das questiúnculas parlamentares, dos escândalos
económicos e dos tiroteios, das lutas operárias. Queria paz e sossego, e se um
novo poder se perfilava clamando por ordem e por lei, pois que chegasse, e
pusesse cobro ao desmando a que se havia chegado.
São estes os factores que justificam a falta de resistência
activa e massiva ao golpe de 28 de Maio nos dias iniciais e subsequentes à
tomada de poder.
in AFONSO, Albérico, Setúbal: Roteiros Repulicanos.
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