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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Livre! Livre! Livre!



A meu filho António

Desentorpece as tuas asas, pensamento! Estende-as, espreguiça-as, mobiliza-as por tentativas, aos poucos, para ganharem as suas proporções naturais sem quebrarem. Assim como não se pode alimentar de chofre um faminto encontrado no deserto, assim como não se pode aquecer com lume forte um regelado encontrado na neve, também não se pode lançar as asas em força, de repente, a partir da sua imobilização de muitas décadas.
Vá minhas asas! Vamos experimentar, cautelosamente, para que fortaleçais no exercício comedido!
Voa, pensamento, no céu desta liberdade promissora que a felicidade te deu agora! Voa livre, livre, livre como os pássaros a quem invejavas no arvoredo, ou as gaivotas que sobrevoam as rendas da praia, que tantas vezes cantaste e glorificaste!
Não! Não tenhas o mínimo receio! As paredes já não têm ouvidos, os cutelos já não têm gume, as prensas já não têm força! Não duvides, parte duma certeza: acabou o suplício de quereres voar e não poderes!
´ E a aurora veio duma melodia, numa canção que tanto aprecias, dum artista que tanto consideras: Zeca Afonso.
A aurora veio duma poesia que tem muita beleza, muita profundidade: uma exaltação à morenice duma vila da nossa familiaridade distrital, mais um versículo de tanta verdade política:

Grândola, vila morena,
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena…

E a aurora veio… (esta, sim!) na Primavera política instaurada na tua Pátria sacrossanta e pura, em pleno 25 de Abril de 1974!
Voa, pensamento que és livre, no azul diáfano da tua inspiração e da tua sinceridade, na brancura da harmonia, no verde da esperança e no rubro do sangue que te faz voar.
Conhecem-me? Eu dizia sempre: ainda espero de poder escrever em jornais do meu país com uma Imprensa livre. Dizia-o com uma fanática esperança, com uma inabalável convicção.
Político, propriamente não sou. Mas sou homem, tenho um sentir, tenho um patriotismo talvez acima do comum e tenho uma veia literária que Deus me insuflou por sua generosa graça. E via-me escravo do pensamento alheio, tiranizado, entorpecido por uma comissão que se chamava, primeiro, de censura, depois transmutada em exame prévio por uma manobra tão insidiosa como sarcástica e jesuítica, no sentido mais pejorativo do terno.
Aí têm, os que descriam! Aí têm aqueles que me desesperançavam com afirmações de axioma: - «Isto está forte como um rochedo».
Aí tem os que adoravam o marasmo, o melaço, a imprensa pastel-de-nata, a imprensa pasta-de-fígado!
CONSUMMATUM EST!
A aurora do 25 de Abril inscreveu-me na alma a quarta grande data da minha vida: depois do nascimento, do baptismo e da minha formatura, a liberdade da expressão do meu pensamento!
Salve heróis do mar e da terra, que me libertaste da prisão espiritual, que me restituíste o dom maior da existência, depois da graça de Deus!
Salve minha primeira manhã livre! Não mais açaimos, não mais espiões, não mais garras suspensas a mordiscarem-me os meus inocentes artigos com as maxilas do lápis azul, como tantas vezes aconteceu! E que lindas anedotas eu tenho para contar…
Foi pela música que surgiste, manhã radiosa da libertação. EU ESTAVA NA RAZÃO!
Obrigado, manhã 

Luís Manuel Cabral Adão

in O Setubalense, 3 de Maio de 1974

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