Generosa e sofredora, a rendilheira de Setúbal, por pendor natural do sexo mais afectuosa, mais económica, mais paciente e mais disciplinada do que o homem, sabia arrancar do coração amantíssimo nos mais amargos momentos das suas desditas os mais doces sorrisos de alento, de mistura com meigas palavras de consolação, sempre que os seus entes queridos pareciam querer soçobrar nas agruras da vida. O seu espírito de economia, aliado ao seu amor ao trabalho, era o escudo contra o qual, em momentos bem dolorosos, se quebravam os mais rudes golpes da adversidade.
E, porque era assim, e porque também era previdente, um dia, abandonou os bilros, os «piques» e os alfinetes; fechou a porta à rendeira intermediária e foi procurar, fora de casa, os réditos compensadores do seu trabalho, que esta lhe não dava, mas que a sua depauperada economia familiar, imperiosamente, lhe exigia.
Uma após outra, as almofadas herdadas de mães e de avós foram arrumadas a um canto. A confecção manual das rendas, arruinada pela ambição desmedida de lucros exagerados, a dos intermediários, e batida pela concorrência desleal da indústria mecânica, foi abandonada pela mulher do pescador setubalense que, acossada pelas duras necessidades da vida, se refugiou nas fábricas de conserva de peixe.
Assim se definhou e morreu, em Setúbal, uma das mais belas e mais ricas manifestações da arte popular, verdadeira dádiva do Portugal marinheiro, que ocupava centenas e centenas de mulheres e de raparigas, que desviadas, desde muito novas, da ociosidade, sentiam verdadeiro apego ao lar e arreigado amor ao trabalho, e adquiriam, que a natureza das rendas os exigia, hábitos de asseio e de higiene, além de as subtrair à promiscuidade das fábricas e de lhes aprimorar o sentido estético, enquanto lhes permitia agenciar meios de subsistência subsidiários dos magros ganhos do marido, do pai, ou do irmão, que lhes viriam tornar menos penosa uma tão temida viuvez, que tanto e de tão perto espreita a companheira do homem do mar.
A boa, a genuína manufactura da renda popular portuguesa, há muito, batida pela concorrência da máquina e pela acção nefasta dos intermediários, está, agora, ameaçada de novo e rude golpe, já começado a vibrar pelos produtos plásticos, sem tradição e sem expressão popular, e, o que é mais, pelos anseios desmedidos de falsas aparências, do fútil e do barato, tão característicos da nossa época.
As rendilheiras de Sesimbra e de Sines seguiram o caminho das suas colegas de Setúbal.
A mesma sorte parece esperar as de outros centros rendeiros do litoral, que ainda o não seguiram, e, teimosamente, continuam agarradas aos bilros.
Pedro Cervantes de Carvalho, que foi capitão do porto de Peniche e nos deixou um folheto intitulado «A Indústria de Peniche» (Lisboa, 1865), informa-nos de que uma guarnição de renda para um lençol, paga pela cliente ao rendeiro intermediário, por 4.500 réis, fora adquirida por este, em casa da rendilheira, por 3.000 réis, pagos com géneros valorizados, certamente, por alto preço. A artífice consumira, no seu fabrico, cerca de trinta dias. E as linhas e os «piques» pagos pela fabricante! Uma das mais destras rendilheiras não auferia, então, diariamente, mais de 60 a 100 réis! E era muito, que as menos experimentadas nem tanto!
Não se dirá que o negócio das rendas não era rendoso... Rendoso para quem as vendia, que não para quem as fazia!...
Amiudadas vezes, a rendilheira era visitada pela rendeira, que ia «cortar» a renda na almofada para depois a cerzir a outras iguais adquiridas em casa de outras feitoreiras. Só muito raramente, a rendilheira e a rendeira vendiam, directamente, ao público; a primeira vendia à segunda. A venda a retalho era tarefa do rendeiro, ou vendedor de rendas, que as adquiria em casa das rendeiras.
As senhoras «Rabeias», da Rua Direita, a senhora Agostinha Paulo, da Rua de São Francisco, e a senhora Rita Martins da Silva, do Largo da Fonte Nova, eram aqui, no nosso bairro de Troino, as mais endinheiradas rendeiras, há cinquenta e mais anos. Quando Deus queria, emprestavam dinheiro a reembolsar em rendas à fabricante, para compra das meadas de linha, e, também, para acudir às mais prementes necessidades do lar, quando o mar se tornava mais avaro de peixe, ou mais pródigo de perigos.
A «Olinda da Cabaça», que tinha assento certo na antiga Rua de Coina, a que agora chamam da Brasileira, acumulava as funções de rendeira intermediária com as de vendedeira. Uma vez por outra, ia de abalada até ao Alentejo e ao Algarve e por lá deambulava, de terra em terra, na azáfama do seu negócio.
O negócio da Ana Violante era outro. Ali, na sua loja, na Rua do Adiantado, também chamada de Paulino de Oliveira, vendia as linhas em meadas por dez réis para, depois, as comprar em rendas por dez réis de mel coado...
As rendas conhecidas pelos nomes de «rosário», a mais estreita e a mais larga, de «rosas», uma de 8 cm. e outra de 10 cm., de «mão de luva» com os seus 13 cm., de «pinheiros», com 7 ou 12 cm., de «cobra», uma das mais largas com 18 cm., de «laços», com 15 cm., verdadeiros mimos da arte popular setubalense, saíam de casa da rendilheira em troca de uns muito regateados e muito minguados 12 vinténs por cada vara.
Os entremeios iguais à renda de «cobra» com 7 cm., à de «laços» com 8 cm., e à de «pinheirinhos», também com 8 cm., não tinham cotação superior a 1 tostão, a mesma do entremeio do «rosário» para as alvas dos sacerdotes.
Entre as franjas mais vulgarizadas figuravam as chamadas de «laços», de «pinheiros» e de «rosas», que a rendilheira não conseguia vender por mais de 13 vinténs cada par para o guarnecimento de uma toalha de rosto; só a chamada franja de «pena de pavão», com 12 cm. de largura, é que conseguia a elevada cotação de 2 tostões o par...
As espiguilhas, estreitas e simples, que a rendilheira fazia em casa à noite quando a luz clara do dia cedia o lugar à luz mortiça do candeeiro de petróleo, eram vendidas por preços irrisórios; a «espanhola» com 2 cm. de largura não passava do pataco; a «pontinha de nós» e a «pontinha de leque», uma e outra com 3 cm., não iam além de uns escassos 60 réis a vara.
Com 5 tostões pagava-se à rendilheira uma vara de franja chamada de «pêras», com 15 cm. de largura. Mas a franja de «aranhas» com 12 cm. não passava dos 12 vinténs.
Acrescente-se que neste negócio de rendas havia duas medidas: uma, a vara com 11 dm, para comprar, em Setúbal, em casa da manufactureira, e outra lá fora, nas mãos do rendeiro, mais curta, o metro, para vender em casa das clientes, contrariamente aos preços, que eram na compra regateados e minguados, e na venda folgados e de lucros exagerados...
Como se o aviltamento do trabalho, a que sempre conduz uma remuneração irrisória, não bastasse para apressar a morte inglória da rendaria setubalense, sobreveio a concorrência da máquina. Aceita-se a mecanização da produção como meio de, com fartos lucros, se obter muito e depressa. Mas reconhece-se que a máquina não cria arte. Pode a renda produzida mecanicamente ser perfeita e barata, mas não é trabalho artístico. Não define, como a manual, o sentimento estético do realizador. A máquina internacionaliza a técnica do fabrico. O trabalho manual, pelo contrário, conserva-lhe a feição nacional, própria, inconfundível. A rendaria mecânica é de todos os climas e de todas as latitudes. Não tem nacionalidade. A manual, essa, sim, tem feição nacional, reflecte as características de um povo, dos seus sentimentos artísticos, do seu labor, das suas tendências e das suas possibilidades criadoras. Exprime vida. É arte.
A arte popular da rendaria morreu, em Setúbal, sem que, com a sua morte, lucrasse a economia doméstica do pescador, se robustecesse o amor ao lar, aos maridos, aos pais, aos irmãos e aos filhos, antes com grave dano para o aconchego de todos e para a criação e educação destes últimos. A nova ocupação da mulher do pescador, mal remunerada e mais penosa do que a das rendas, não resolveu o seu problema económico; as suas mágoas continuaram escondidas sob os sorrisos de uma felicidade aparente.
Com uma pouco farta malga de caldo chilro e requentado, de mistura com uma negra côdea de pão duro no estômago para iludir a fome, umas, as mais velhas, de xale sobre os ombros, outras, as mais novas, de blusa domingueira e ares casadoiros, foram alugar os braços à indústria conserveira, onde, desviadas do agasalho da casa e dos afectos da família, eram alvo dos olhares mais atrevidos e mais presunçosos dos companheiros de trabalho. À noite, voltavam para casa, agora desalinhada e sem conforto, exaustas, desiludidas, sem uma vaga esperança de melhores dias, para recomeçarem, no dia seguinte, a sua nova faina, depois de um repouso, de algumas horas, sobre uma enxerga dura.
Foi assim, há um meio século bem contado!
Ainda ficaram teimosas velhinhas, algumas com os seus oitenta janeiros bem pesados, alquebradas e de voz cansada, se a vista lhes não faltava de todo. Continuaram a fazer, com os dedos descarnados e trémulos, as suas rendinhas!... Dobradas sob o peso dos anos, de rosto encarquilhado e sequinho, onde mal se divisavam os destroços da beleza fugidia da mocidade, já despreocupadas do uso de atavios de encantos naturais, lá continuavam, como podiam, tecendo enfeites de graças alheias...
Com elas, morreram as últimas rendilheiras de Setúbal!
As filhas e as netas ainda para aí estão, sempre pacientes, sempre laboriosas, a descabeçar, a engrelhar e a enlatar sardinhas.
No regaço da Rainha do Sado, os bilros deixaram, há muito, de gemer saudades do silêncio e da quietude dos pinhais...
in
COSTA, José Marques da, Rendas de Setúbal
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